terça-feira, 24 de maio de 2022

 Nu het virus slaapt, een hopelijk eeuwige slaap die geen prins ongedaan zal kunnen maken, presenteer ik hier een boek van de mede aan de uitwerkingen van het virus overleden Braziliaanse schriver Vicente Franz Cecim. Er is nog geen vertaling naar het Nederlands (of welke andere taal dan ook) en de auteur heeft niet de gelegenheid gehad deze tekst bij een uitgever aan te bieden. Voor wie Portugees lezen kan volgt nu de volledige tekst:






COVID



A CICATRIZ PERFEITA


CECIM DA AMAZoONIA



COVID



A CICATRIZ PERFEITA

CECIM DA AMAZoONIA































É POSÍVEL

VIVER

SEM SER FERIDO

PELA VIDA?









COVID A CICATRIZ PERFEITA

© Vicente Franz Cecim

vicentefranzcecim@gmail.com


IMAGENS

Joachim Patinir século XV

Travessia do Estige

Max Ernst século XX

Por uma semana de bondade


Cecim da AmazoOnia é a signatura mítica com que se devota à região em que nasceu e vive o escritor Vicente Franz Cecim, autor dos livros visíveis de Viagem a Andara oO livro invisível












Cecim da Amazonia, autor do ciclo de ficções reunidas em

Viagem a Andara oO livro invisível, convida neste seu primeiro e breve livro de não ficção – Covid A Cicatriz Perfeita - a refletirmos sobre o Caminho das Pedras e o Caminho das Águas. Evocando o Vedanda e fazendo alusão ao Caminho do Meio Sakhiamita, do budismo Marraiana, de Nagarjuna, o autor convida o leitor a se fazer a pergunta: - É possível viver sem ser ferido pela vida? Pergunta inadiável, durante a travessia de tempos de peste. Schopenhauerné um dos que vêm do Ocidente participar desta conversa – pois é como o livro flui, leve, na forma de um diálogo, em um encontro que o autor marca com o leitor nas margens de um Lago Sereno onde não seremos nem santos nem demônios. Após primeiro diálogo, o livro irá se encerrar, mas somente depois de se abrir para um segundo diálogo: este, agora a sós, do leitor com Bodhidharma, o sábio indiano que concebeu o Chan e da China o fez chegar, como Zen, no Japão.


Segundo Cecim, a resposta dA Cicatriz Perfeita existe: antes da ferida.

























Nestes tempos de Temor e Tremor, lembremos Kafka nos despertando À noite:


Alguém precisa estar aí

Alguém precisa vigiar















Perguntei-lhe pelo mecanismo dessas figuras e como seria possível ter nos dedos os seus vários membros e pontos, sem milhares de fios


Respondeu-me que eu não precisava imaginar que cada membro fosse acionado separadamente pelo operador. Cada movimento teria seu próprio centro de gravidade, seria suficiente reger o mesmo a partir do centro da figura. Os membros, que nada seriam além de pêndulos, se movimentariam sem qualquer intervenção, por si próprios, de modo mecânico


esse movimento seria muito simples: toda vez que o centro de gravidade fosse movido em linha reta, os membros descreveriam curvas, e muitas vezes, provocado de maneira apenas ocasional, o todo viria a ter uma espécie de movimento rítmico, semelhante a dança



Perguntei-lhe se o operador daqueles bonecos tinha que ser um bailarino ou pelo menos ter um sentimento do belo na dança


Respondeu-me que quando uma ação é mecanicamente fácil, não se deve conclui daí que ela é feita sem sentimento algum


Em compensação, essa linha seria muito enigmática. Pois ela não seria nada além do caminho para a alma do bailarino, e ele duvidava que ela pudesse ser achada de outro modo que não fosse o de que o operador se transferisse para o centro de gravidade da marionete, ou seja, que ele dance.



Disse-lhe que jamais me faria acreditar que em um fantoche mecânico pudesse haver mais graça que na estrutura de um corpo humano


Respondeu-me que ao Homem seria pura e simplesmente impossível se igualar, nem que fosse de longe, ao fantoche. Nesse campo só um deus poderia ser comparado à matéria, e nesse ponto se tocavam as duas extremidades do mundo esférico



Heinrich von Kleist

Sobre o Teatro de Marionetes















- O que é esta viagem à coisa humana à noite?


Um dia me descobri ecoando Hoerderlin no terceiro livro visível

de Viagem a Andara oO livro invisível: Os jardins e a noite.

Ele dizendo em A Morte de Empédocles:

E abertamente votei meu coração à terra grave e sofredora e, muitas vezes, na noite sagrada, prometi amá-la fielmente até a morte, sem receio, com seu pesado fardo de fatalidade, e não desprezar nenhum dos seus enigmas.


E eu me disse:

Esta noite a ser negada.

Haverá outra


E abertamente votei meu coração à terra e muitas vezes, na noite sagrada, prometi amá-la fielmente e não desprezar nenhum dos seus enigmas



Vicente Franz Cecim























I O Caminho das pedras

II O caminho das águas

III Rumo à Cicatriz Perfeita


Apêndice

Diálogo com Bodhidharma


A serpente que dá voltas

























Rumo à Cicatriz Perfeita













































I


O caminho das pedras



No meio do caminho

tinha uma pedra


Drummond














Você é uma pessoa criativa?

Se você fosse Água, seria água corrente ou água estagnada?

- Que diferença isso faz?

Você poderia perguntar. E, conforme esteja em um momento de quietude ou inquietude, fecharia este livro mal fossem dados os primeiros passos em seu assunto: viver uma Vida Criativa, rumo à Cicatriz Perfeita – aquela que existe antes da ferida.


Mas se está disposto a continuar lendo, como não é assunto para meia dúzia de pa­lavras é melhor sentarmos na margem de um Lago Sereno para, sem pressa, começarmos.



Um Lago Sereno, assim de repen­te? Antes de termos decidido sequer se somos águas fluentes ou estag­nadas?

Sim, um lago sereno – onde não se­jamos nem santos nem demônios. E de onde possamos nos ver, digamos, de fora de nós mesmos. Porque osci­lamos entre uma coisa e outra tantas vezes durante o mesmo dia, às vezes em apenas uma hora, que não nos manteríamos pelo tempo desta con­versa nem somente na quietude nem somente na inquietude. E, apesar de apenas dois, nos tornaríamos tantos, falando ao mesmo tempo, que isso di­ficilmente seria uma conversa.


O convite é para um Diálogo. Aceita?

Venha. Não tema nosso encontro no lago sereno. Um lago sereno é co­mo aquilo que Nagarjuna, o mestre criador do budismo Sakyamita, chamou de Caminho do Meio. Indo pelo cami­nho do meio quem sabe poderemos avançar sem tantos tropeços, livres das dualidades, dos julgamentos con­dicionados ou precipitados e nos quais somos jogados pelas circunstâncias do momento. Sentados nessa Margem não estaremos nem fluindo como rios nem estagnados como poças de água. Fiquemos em estado de suspensão. E primeiro vejamos, sem culpas nem medos, sem vaidades e sem desprezos, com isenção, por que oscilamos tanto – o que realmente somos, ou tendemos a ser. E acima de tudo vejamos se que­remos e podemos mudar o que somos – se for esse o caso.


E agora, criemos o nosso Lago Sereno para podermos estar plena­mente nele:

Há vento correndo nas árvores e acariciando as águas diante de nós? Digamos que sim. É uma Aurora ou um Crepúsculo, tempo de passagem da Luz para a Treva, já que Penumbra e Caminho do Meio parecem combi­nar melhor? Cada um escolhe o tom de vermelho que lhe agradar mais. Aves cantam ao nosso redor? Se você prefere, sim. Eu prefiro o Silêncio. Al­guém à vista? Ninguém? Se você qui­ser, podemos por um pescador solitá­rio no Lago - ali. Apenas uma pessoa, aqui com a gente – o pescador? Bem, não quero lhe assustar, mas não resis­to ao desejo de prestar minha home­nagem à Imaginação Humana e desejar que outros comecem a vir nestas páginas em que estamos, eu ain­da escrevendo e você já lendo, sentar aqui na margem do nosso lago, antes tão deserto.

Começamos?

- Sim. Eu não sei bem se sou criati­vo ou não. Mas vai ficando mais claro quando me vejo como água. Posso recordar os momentos em que fluí e aqueles em que fui água estagnada. Diante de uma pessoa, de uma de­cisão, de uma situação da minha vi­da. Nós parecemos estar sempre em trânsito, de um estado desses para o outro.


Trânsito. Boa imagem, ajuda a en­tender, porque nos transporta para uma realidade que já conhecemos, não apenas mentalmente, mas viven­cialmente. A vida, em nós e para nós, é mesmo esse trânsito, por dentro e por fora, objetivo e subjetivo. Você di­rige carro? Se dirige, entenderá ainda melhor. Vivemos nossas vidas como nas ruas: nos aceleramos nos sinais verdes, nos detemos nos sinais ver­melhos – embora nem todos. Mas nas ruas, no meio do trânsito, também podemos encontrar o nosso Lago Se­reno, ou o Caminho do Meio: o sinal amarelo. Um tempo de decisão. Dian­te dele, estou em disponibilidade: vou ou fico. - Faço a minha escolha. Mas posso ser empurrado para diante, acusado de estar paralisando o trân­sito – da rua e da Vida. As coisas do mundo, dos outros, são jogadas con­tra nós. É o trânsito objetivo. Trânsito da multidão humana sobre a Terra. No fundo, é bem diferente do trânsito subjetivo, individual.


Digamos que aqui, em nosso lago, à margem disso tudo, somos por al­gum tempo donos de nós – vivemos em intimidade conosco mesmo. Uma intimidade natural, com o que natu­ralmente somos. É o tempo suficiente para nos conhecermos não apenas por fora, também por dentro – profunda­mente. E sairmos de nós para cumprir os sinais convencionados lá fora, do trânsito e todos os outros, sem nos sentirmos mais mecanizados, apenas peças anônimas de uma engrenagem anônima, homens-coisas submetidos e pré-determinados pelo exterior fun­cional e convencionado, pela socieda­de, pelos outros. Isso que chamamos de Civilização. Onde nem tudo é bom, nem tudo é mau. Mas tudo junto é confuso e insatisfatório – porque o resultado da mistura é uma coisa que conhecemos todos muito bem.

- O que?

O Medo. Vivemos em um mundo que tememos e que nos teme. Por is­so nos controla, nos assegura para si, maneja as rédeas. E nossa rebelião, sim, é necessária, para libertar esse mun­do de suas próprias rédeas..


Aqui, agora, na margem do nosso Lago Sereno, no Caminho do Meio, suspensos no sinal amarelo das nos­sas vidas, decidindo se vamos ou fi­camos – que tal encadearmos os elos dessa cadeia que há milhares de anos arrastam os homens e são por eles ar­rastados?


- Ouça.

Nenhuma ave canta, até o vento pa­rou. O lago está absolutamente imóvel. Neste momento, nós somos o Homem sobre a Terra, neste canto do Cosmos. O Silêncio Original nos acolhe e cala mais, para ouvirmos só a nossa Voz mais Real.

Sejamos essas Águas e ouçamos, então, o que nos diriam de dentro de nós:

- Somos rebeldes porque não so­mos livres.

- Livres para sermos o que natural­mente somos: seres sem Medo.

- Seres sem Medo para sermos Cria­tivos.

Ouvimos.

Você ouviu?

- Sim. Mas ainda falta alguma coisa.

Para o que?

- Não sei. Mas falta.


Ah, você ainda está no meio dos si­nais, agora no verde, agora no verme­lho, agora no amarelo. É isso? Ainda oscilante. Ora água humana fluindo, ora água humana estagnada. Falta al­go para que possa voltar para o meio do Trânsito da Vida sem se ver nova­mente perdido nele?

- Sim.

É como o que os muito antigos ini­ciados chamavam de a Quadradura do Círculo. Sem ela, falta o essencial. E o conjunto não se auto organiza, não se sustenta. Falta um centro - O Centro.

- Que Centro?

Olhe, o nosso Lago já é a resposta. Veja como tudo, inclusive nós, se har­moniza ao redor dele.

Sabemos, pois o próprio Lago, ou a Vida, nos disse, quais as con­dições essenciais para convivermos, humanos, com o trânsito do mun­do. Você pode repetir? Só para não perdermos o fio da meada que pode nos libertar dos elos da corrente que nos prende.

- Sermos Livres.

- Sermos Livres para sermos o que naturalmente somos: seres sem Medo.

- Seres Livres para sermos sem Me­do para sermos Criativos.

E para sermos criativos, o que nos falta ainda?

- O Centro.

E o que é o Centro?

Vou ajudar: - O que é o Lago Sereno em Nós?

Vejo que você olha para as águas do lago imerso em reflexões, como aquele que está tão perto do que busca que não o consegue ver. Mas, quem sabe, como se diz: já por um triz de achar.

Sim, é bem possível: por um triz de achar. E talvez quem sabe nem se trate de achar – mas de criar.

Afinal, somos & estamos em um mundo criado – por Algo que antes talvez já soubemos e Agora parece que apenas ainda pressentimos – e pa­rece bem sem sentido viver nele não criativamente.


Mas você está buscando tanto, olhando as águas, que já nem me ouve.

Melhor que agora fique só, então.

Nos encontraremos aqui em breve? Para achar ou criar uma Vida onde aprendamos a caminhar, sem tropeçar tanto, neste caminho de pedras?

Prometo que mergulharemos fun­do, e dessa vez diretamente no centro das águas.

E o que ainda falta vai vir à tona. O seu Real, Único e Inabolível Centro.


Um tempo para o Silêncio.











































II


O caminho das águas


Se a tranquilidade da água

permite refletir as coisas,

o que não poderá

a tranquilidade do espírito?


Chuang Tsé






- Se fosse Água, você seria água corrente ou água estagnada?

- Ah, você voltou,

Sim, E você con­tinua aqui, diante do nosso Lago Sere­no, olhando as Águas. O que elas lhe mostraram? Nós combinamos falar hoje sobre a lição das águas, lembra?

- Lembro, por isso fiquei aqui, me olhando nelas. E ficou mais claro aquilo que já falamos: sobre as pedras do caminho que precisamos atraves­sar e estão entre nós e o fundamental: sabermos Quem Somos.

O que só conseguiremos atingindo o Centro do que somos.

- Para isso, temos que ser rebeldes para sermos Livres.

- Sermos Livres para sermos o que naturalmente somos: seres sem Medo.

- Sermos sem Medo para sermos Criativos. Para fluir como águas hu­manas, não estagnadas.

Sobre essa Travessia é bom dei­xarmos claro, desde já, que chegan­do ao Centro do que somos, já tendo atravessado, veremos que as próprias pedras – o peso da falta de liberdade & a obstrução do medo – continuarão existindo, também no Centro, mas não mais diante de nós porque

tere­mos aprendido a nos desviar delas. Antes, fora do nosso centro éramos fixos – nele, nos tornamos móveis. Essa é a lição das águas.

De dentro desta página, onde agora estamos juntos, certamente você já leu o que Chuang Tsé diz acima sobre a tranquilidade das águas & do espírito.

- Sim.

Através dele, Chuang Tsé, pene­tramos no caminho do Tao – que se pode traduzir aproximadamen­te, do idioma chinês para o nosso, por O Caminho. Esse Tao/Caminho que é ao mesmo tempo Onipresente – porque atua em tudo e nada é sem ele – e ao mesmo tempo deixa tudo livre para ser o que é conforme sua natureza – sendo também Oniausen­te, uma palavra que achei ou inventei nos livros de Andara. Parece com o Caminho do Meio de Nagarjuna, de que falamos antes, não é? Livre dos conflitos da Dualidade. Condição es­sencial para uma vida livre, sem me­do, fluente. Então: Criativa. Porque, existindo em um Universo criado, e sendo seres criados, certamente não teria sentido viver não criativamente. Você concorda?

- Sim.


A lição das águas é essa. É a Via das Metamorfoses, da Vida Móvel. Não mais fixos poderemos ser criativos. Jo­garmos o jogo que nos joga – livres do Medo porque, sabendo O Que Somos poderemos nos permitir sermos o que for preciso que sejamos - nos tantos diálogos que precisamos manter com as nuances & circunstâncias da nossa existência como entes humanos em permanente transformação, objetiva & subjetivamente - já sem temer nos perdermos do Ser que – imóvel em si, como ensinou Parmênides – é o Cen­tro inalterável que verdadeiramente somos. Até aqui está claro?

- Sim. Mas ainda nem tudo. Se so­mos coisas efêmeras, que nascem, duram um tempo e desnascem, di­gamos assim – como podemos ser, ao mesmo tempo, Isso que é inalterável e permanente?

Ah, sua dúvida é porque ainda não sabe a resposta para a pergunta do Koan Zen que nos indaga: - Como era o teu rosto antes de teres nascido?

- E qual é a resposta?

Fique com a pergunta, conviva com o Koan, incorpore ele a sua vida,

E o mantenha vivo em você todos os momentos até ter a resposta – por­que essa Resposta é um Saber que só poderá brotar de você, e não um conhecimento que eu ou qualquer outra pessoa possa lhe ensinar, como aprender a falar um idioma ou diri­gir carro, transmitindo informações. Um Saber só pode brotar do Ser que Somos – e o Saber é a própria Vida – e, para além & aquém do Ente que você é, no efêmero – você também é parte do Ser do Todo que tudo sabe e, sendo assim, você sabe o que Ele sabe. Mas está oculto em você, de você, pelo pró­prio ente que enquanto Ente - vivendo na Alucinação de ter um eu separado do Todo de Tudo - você é.


Um outro mestre do Tao, Lié Tsé, pode nos ajudar a entender isso.

Você quer saber o que ele diz?

Eis: O pu­ro e leve ascende e se torna o Céu. O inquieto e pesado desce e se torna a Terra. Os sopros intermediários, ao se misturarem humanamente, gerariam o Homem.

É nessa região intermediária que nós, homens, habitamos. Achando que somos apenas Entes, por algum tempo, suspensos entre Céu & Terra - Mas também somos Seres fora do tempo, todo o não tempo que perdu­ra a Vida do Todo que tudo é. Dimen­são da qual você participa – ó gota de água que ignoras que és o Oceano.


Mas vamos à Lição das Águas. Pe­netremos na Via das Metamorfoses. E com bom humor – porque não há Saber se não houver Sabor – digamos que, diante do nosso Lago Sereno, tu­do vai ficar para nós claro como água, como se diz.


Veja, o Sol já está nascendo. Vai começar a evaporar a água do lago. E ela vai se metamorfosear em vapor de água. E aceita essa transformação - sem nenhum temor - usufrui des­se Dom que tem de se converter de água, em estado líquido, em vapor. Como o Dom das metamorfoses é ilimitado, depois vai se adensar e se transformará em nuvem. Então, virão os ventos e a levarão, já como nuvens, através dos céus, a sobrevoar talvez a Terra inteira – subiu do nosso lago, aqui da Amazônia, quem sabe atra­vesse o Atlântico e vá flutuar sobre os céus ardentes do Sahara, ou gela­dos de um dos Polos. Nada a temer: para a Água suas metamorfoses são aventuras & uma ventura – desfruta dessa liberdade, do fluir através de suas mutações. Como uma das carac­terísticas do Dom das Metamorfoses é, também, jamais se fixar em uma das formas que momentaneamente assume, a ex-água em estado líquido, que se tornou vapor, depois nuvem – vai agora se transformar em chu­va. E choverá, retornando dos Céus a Terra – lembre o que disse Lié Tsé: O puro e leve ascende e se torna o Céu. O inquieto e pesado desce e se torna a Terra. E a água verá que as meta­morfoses por que passa são boas, são benignas, benéficas. E até curativas. Porque se ela chover sobre o Sahara, vai fecundar a Terra ressecada. E se chover sobre um dos Polos - como nos homens, na nossa ignorância enquanto entes, estamos perfuran­do a camada de ozônio e causando grandes degelos que já afetam suici­damente o clima da Terra – vai repor lá a água que tiramos, e eis a nossa água, em mais uma metamorfose, se transformará em gelo.


Mas digamos que a água do nos­so Lago dê a volta por toda a Terra e volte a chover justamente aqui, sobre o Lago onde iniciou suas mutações.


Terá voltado a ser a Água que nunca deixou de ser, e que, essencialmente, é - e sabe, em si, que é.


Essa é a Lição das Águas para nos, homens.

A Água nada teme porque sabe o que é, permanentemente, através das formas que posse assumir.

Ela se sabe ser no sido sendo fosse seria é.

- O que?

Água.


Sabendo o que somos, achando o nosso Centro – a nossa autêntica Iden­tidade, no fundo de nós - poderemos fluir de metamorfose em metamor­fose, através dos nossos momentos, das nossas circunstâncias, das situa­ções da vida, das alegrias & tristezas, livremente. Sem apegos nem depen­dências seja a um bem seja a um mal que estejamos atravessando. Sabendo, como diz o Anel das Metamorfoses, que: - Isto também passará. Seja o que for.


- Sim. Como bem diz o Zen do Povo: - Não há mal que sempre dure nem bem que nunca se acabe.


Isso.

Chegamos ao Centro.

E O Centro – que em Andara eu mostro sob esta forma geométrica: oO – ou o eu pequeno que o homem é unido ao Eu grande que a Vida é – esse Centro é o Ser que somos, e que uma vez visto Face a Face nos revela que os entes que vamos sendo ora de um jeito ora de outro, são assim, efême­ros, justamente para podermos ser mutantes.


- Ah, agora sim, ficou claro como água:

Mutantes para sermos Livres.

Livres para sermos sem Medo.

E sem Medo para sermos Criativos.
































III


Vida Criativa:

Rumo à Cicatriz Perfeita


O eu que se identifica com os fenômenos

é fruto do engano e ignorância.


Purusha é a consciência que observa os fenômenos sem se identificar com o que testemunha.


Vedas







Quantas feridas emocionais você carrega consigo pela vida afora desde que nas­ceu?

Faça um inventário, só, consigo mesmo. Conte nos dedos, se preferir. E estará se aproximan­do passo a passo, ou dedo a dedo, da pergunta decisiva:

- É possível não ser ferido nesta vida?

Esta pergunta pede que você se faça, antes, uma outra:

- O que, em mim, é ferido? Atingido pelos estilhaços objetivos & subjetivos do mundo? Seu eu?


Então, há um eu que recebe as feridas da vida. E, uma vez ferido, esse eu se torna reativo e passa a se relacionar agressivamente com os outros eus – e também consigo mesmo – ou defensivamente se retrai e cons­trói um muro de indiferença ao seu redor. E pronto: eis mais um pronto para ser infeliz - alguém que apenas reage, vivendo em estado per­manente de defesa ou ataque, não mais livre para agir.

Mas que eu é esse? Ele existe?

Segundo Krishnamurti – que nunca nos engana - o eu é uma imagem que construímos sobre nós mesmos e é essa imagem quem se machuca. Essa imagem pode ser des­feita? Você pode libertar seu eu real? Voltar a viver por ações – espontanea­mente – e não mais através de reações – condicionadamente? - Sim. Mas como atingir essa Libertação? Onde você e o mundo, agindo juntos, esconderam o seu Eu Real?


Quando o primeiro livro de Krishnaji caiu em minhas mãos ainda muito jovem, ele me disse para fazer assim:

- Não lute contra esse eu ferido. Isso só criará mais conflito e novas feridas. Se observe, apenas se observe, sem se julgar – e você per­ceberá quando quem está agindo é o seu eu real e quando é a imagem do eu que fez de si quem está reagindo. É simples assim: se você age, é o seu eu real, se reage, é a imagem, o falso eu quem está predominando.


Passei a fazer o que Krisnamurti disse que fizesse, através do que chamei: - O Eu em mim vendo o eu na vida vivendo.


Entendido isso, podemos voltar à pergunta decisiva:

- É possível não ser ferido nesta vida?

Você só descobrirá desfazendo a ima­gem de eu em que passou a viver a Vida também como uma imagem. Imagem que, através dele, fez dela. Pois é justa­mente essa vida-imagem que fere esse eu-imagem. - Livre-se dessa existência de miragens que se alimentam reci­procamente. Quem poderá fazer isso por você? - Ninguém. Só você, em si e por si, pode libertar esse Eu Autêntico e passar a viver nele a Vida Autênti­ca.

Não há guias?

Sim, sempre houve apontadores de caminhos em todas as Culturas: os Vedas arianos, o Tao e o Chan chineses, o Zen japonês, o Budismo indiano, o Sermão da Mon­tanha cristão, o filósofo grego Plotino, os Sufis e os místicos Rumi e Suhrawardi, no Oriente Médio & Eckhart, no Ocidente, os mestres Hui Neng & Dogen na Ásia – mas nada podem fazer por você a partir deste ponto. Nem o próprio Krishnamurti. E menos ain­da os analistas em seus consultórios logo ali na esquina. Tudo dependerá, agora, unicamente de você.


Porque um homem só pode transmitir a outro homem as informações que coletou e codificou à sua maneira e, no máximo, levam a um Conhecimento que cada um construiu – e assim há tantos co­nhecimentos quantos homens, e tudo o que está no limite do Conhecimento por sua própria natureza está destina­do a se fragmentar em vários conheci­mentos, em colisão e discordância, e é nesse território de variantes – também feito de imagens variantes – que nós estamos. Território de armadilhas. De que se nutre o eu-miragem e nutre a vi­da-miragem. Lugar incerto. Limitado & limitante. E onde estamos presentes como - Entes Humanos. E é só até essa nossa dimensão – de entes humanos, corpos sensíveis ao tempoespaço - que os conhecimentos reunidos por outro homem podem nos levar. Mas o Ca­minho da libertação - em que você vai precisar ser o sábio de si mesmo - para atingir o que você realmente é, em si, o seu EuReal, vai além. Leva ao não terri­tório ilimitado do Ser que também so­mos. Caminho solitário, até a fronteira do qual Alguém que já o fez o acompa­nhará, mas diante da qual pára e lhe diz:

- A partir daqui, vá sozinho.


Seria oportuno voltarmos sobre os nossos passos, fazermos um retrospecto das coisas que falamos antes, agora?


Ah, a Memória – esse abismo, por trás de nós.

Mas, além desse abismo pelas nossas costas, quem sabe algo ainda diante de nós pudesse ser dito, sobre o Caminho, adiante - antes da fronteira final.

Vejamos isso?









Vida Criativa I:

O caminho das pedras


começou perguntando: - Você é uma pessoa criativa? Se você fosse Água, seria água corrente ou água es­tagnada? E nela vimos que oscilamos entre uma coisa e outra. Para escapar dessa agitação, criamos e nos trans­portamos para a margem de um La­go Sereno. Depois, a palavra Trânsito nos levou ao nosso dia a dia, e fala­mos na margem do nosso Lago da nossa vida, assim: - Trânsito é uma boa imagem, ajuda a entender, por­que nos transporta para uma reali­dade que já conhecemos, não apenas mentalmente, mas vivencialmente. A vida, em nós e para nós, é mesmo esse trânsito, por dentro e por fora, objetivo e subjetivo. Vivemos nossas vidas como nas ruas: nos aceleramos nos sinais verdes, nos detemos nos sinais vermelhos. Mas nas ruas, no meio do trânsito, também podemos encontrar o nosso Lago Sereno, ou o Caminho do Meio de que fala Nagar­juna: o sinal amarelo. Um tempo de decisão. Diante dele, estou em dispo­nibilidade: vou ou fico. - Faço a mi­nha escolha. Mas posso ser empurra­do para diante. É o trânsito objetivo. Trânsito da multidão humana sobre a Terra. No fundo, é bem diferente do trânsito subjetivo, individual. E tendo entendido isso, voltamos ao Lago e prosseguimos: - Digamos que aqui, à margem disso tudo, somos o que naturalmente somos. Aproveite­mos para nos conhecer não apenas por fora, também por dentro – pro­fundamente. Depois voltaremos ao que chamamos Civilização. Onde convivemos com uma coisa que co­nhecemos todos muito bem. - O que? O Medo. Vivemos em um mundo que tememos e que nos teme. Por isso nos controla, nos assegura para si, maneja as rédeas. Diante do Lago, então, eis o que entendemos: - Somos rebeldes porque não somos Livres. - Livres para sermos o que natural­mente somos: seres sem Medo. - Se­res sem Medo para sermos Criativos. Mas alguma coisa ficou ainda faltan­do. E nós a achamos, e chamamos de – O Centro, aquilo que realmente somos. Mas paramos por aí – sem chegarmos a esse O que somos.



























Vida Criativa II:

O caminho das águas


trouxe a nós Chuang Tsé, para nos ajudar a completar a travessia das pedras. E penetramos no Tao/Caminho que é ao mesmo tempo Onipresente – porque atua em tudo e nada é sem ele – e ao mesmo tem­po deixa tudo livre para ser o que é conforme sua natureza – sendo também Oniausente. E chegamos à lição das águas para os homens. A Via das Metamorfoses, a Vida Móvel. Não mais fixos podemos ser criativos. Jogarmos o jogo que nos joga – e, livres do Medo, sabermos O Que Somos, e então nos permitir sermos o que for preciso que seja­mos - já sem temer nos perdermos do Ser que – imóvel em si, como ensinou Parmênides – é o Centro inalterável que verdadeiramente somos. Lembramos outro mestre do Tao, Lié Tsé, nos dizendo: O pu­ro e leve ascende e se torna o Céu. O inquieto e pesado desce e se torna a Terra. Os sopros intermediários, ao se misturarem humanamente, gerariam o Homem. E passamos a limpo a lição das águas, enquan­to o Sol nascia sobre o lago: - Veja, evaporando, a água do lago está se metamorfoseando em vapor de água. E aceita essa transformação - sem nenhum temor - usufrui des­se Dom que tem de se converter de água, em estado líquido, em vapor. Como o Dom das metamorfoses é ilimitado, depois irá se adensar e se transformará em nuvem. Virão os ventos e a levarão, já como nu­vens, através dos céus, a sobrevoar talvez a Terra inteira. Nada a temer: para a Água suas metamorfoses são aventuras & uma ventura – desfru­ta dessa liberdade, do fluir através de suas mutações. Como uma das características do Dom das Me­tamorfoses é, também, jamais se fixar em uma das formas que mo­mentaneamente assume, a ex-água em estado líquido, que se tornou vapor, depois nuvem – irá agora se transformar em chuva. E choverá, retornando dos Céus à Terra – e a água verá que as metamorfoses por que passa são boas, benéficas. E até curativas. Se chover sobre o Sahara, vai fecundar a Terra ressecada. E se chover sobre um dos Polos vai repor lá a água que tiramos aquecendo o planeta. E a água, em mais uma me­tamorfose, se transformará em ge­lo. Mas em todas as suas mutações a água nunca deixou de ser o que, essencialmente, é - e sabe que é: - Água. Então, evoluímos rapidamen­te para uma compreensão que tudo resumiu: - Sabendo o que somos, achando o nosso Centro – a nossa autêntica Identidade - poderemos fluir de metamorfose em metamor­fose, através das alegrias & das tris­tezas, livres de apegos e temores. E por fim aprendemos com as meta­morfoses da água a superação das pedras do caminho, assim: Sermos Mutantes para sermos livres. Livres para sermos Sem Medo. E Sem Medo para sermos criativos. Essa compre­ensão nos levou bem perto da fron­teira do que representa ser um ente humano e nos tornarmos mais ca­pazes de superar nossas limitações humanas.


O que ficou faltando?















A Ciranda da Vida


nos envolver também.


A Ciranda nos dizer: a vida é um vai e vem constante - nela se esclarecendo uma coerência em sermos mutantes, quando fala­mos do que, segundo os Vedas, é a Lei que rege o nascimento & a disso­lução de tudo o que, surgindo com suas formas, no Visível, se destina a regressar à não forma originária de que provém do Invisível.


Chegamos então no Prakirite & nas Gu­nas, um dos mais antigos saberes védicos, que nos diz que tudo se deve ao sortilégio delas: Raja, Tatva e Satva, agindo sobre uma matéria prima, originalmente informe, o Prakirite.

A primeira guna dando o Im­pulso inicial - que Cria a Forma das coisas, moldando uma porção de Prakirite/a segunda acolhendo na Inér­cia as coisas já formatadas – homem, peixe, pedra, estrela - para que permaneçam nas suas formas, por algum tempo/e a terceira as Di­luindo novamente no Prakirite, o rio sempre fluente de matérias primas originárias. O que vem após o retorno à não-forma? Recomeça o vai-e-vem da Forma à nãoFormas, do qual não vemos o fim.









Purusha



Atingida essa última fronteira, saltamos dos Entes humanos que fomos – percorrendo o Ciclo menor, terrestre, segundo a Lição das Águas: do Sermos Livres para sermos Sem medo ao Sermos Sem medo para o aceitarmos Sermos Mutantes – pa­ra as Mutações que o Universo nos destina, percorrendo o Ciclo maior, celeste - do Prakirite sermos forma­dos e em nossa forma de homens por algum tempo sermos mantidos para sermos depois devolvidos ao Prakirite originário.

Se este percurso do Ente está bastante associado ao Denso, ao tempoespaço e ao material, ao visível e à Forma – qual o do Ser?

Sem haver feito ainda esse percurso de ida e retorno do Ente, quem ousaria dizer?

Pela via dos Conhecimentos não é permitido a ninguém.

Mas pelas Vias do Saber, estranhas e súbitas cintilações têm feito a alguns homens revelações prematuras ao longo dos tempos.


Uma delas se manifesta, no Tao, através do Imperador Amarelo, que disse: - O que é leve e puro pertence ao Céu. O que é pesado e impuro pertence à Terra. Quando o espírito se separa do corpo, ambos retornam à sua condição original.


Mas aqui estamos ouvindo outra fonte, o Vedanta, e ela nos diz que havendo entendido o processo acima, e liberto o Ser das limitações & limites do Ente, desperta em nós como que um sereno e quieto Clarão: - Purusha – o Observador de to­da essa Ciranda de fenômenos, que com eles não se identifica.

Apenas Testemunha.

Ilimitado. No puro Saber Ser,

Purusha, porém, só se manifestará após a extinção do Corpo, a eliminação do Ente – àquilo a que chamamos morte?

Não.

Purusha é o Homem que pode despertar já no homem ainda no Ente – aquele que, havendo visto o mundo manifesto como Fenômeno onde o Ente está imerso em suas ilusões, aprendeu a caminhar no Caminho das Pedras – que fere – e dirige seus passos pelo Caminho das Águas – entre a flexibilidade e a não-ilusão.

O Homem que acordou do Sonho do Ente e que agora habita no seu Ser Desperto e se testemunhando viver percorre a via da Cicatriz Perfeita – aquela que existe antes da ferida acontecer.

Marquemos um encontro com Purusha.

- Onde?

No Lago Sereno.

É exatamente em nós.


Como o reconheceremos?


O Kata Upanishad, um dos livros sagrados dos Vedas, nos descreve Purusha assim:


O Purusha, do tamanho de um polegar, reside no corpo. Ele é o Senhor do passado e do futuro. Aquele que consegue conhecê-Lo não pode ocultar-se de si mesmo, nunca mais.


E também diz dele:


Purusha, do tamanho de um polegar, é semelhante a uma chama pura sem fumo. Senhor do passado e do futuro. Ele é sempre o mesmo, hoje ou amanhã. Ele, verdadeiramente, é aquele que

deve ser conhecido.










































Diálogo com Bodhidharma













O Homem que acordou do Sonho do Ente e que agora habita no seu Ser Desperto e se testemunhando viver percorre a via da Cicatriz Perfeita – aquela que existe antes da ferida acontecer.











Há um momento em sua luminosa clara escura obra em que Schopenhauer diz:


O anseio por conhecer se chama

vontade de saber quando é

orientado para o universal,

orientado para o particular

se chama curiosidade


Qual é o seu caso?

Atravessar a Vida tendo olhos triviais, ao rés do chão, ou você ergue os olhos, pelo menos de vez em quando, e se indaga face a face com as Estrelas e ao Mais Obscuro que se oculta por trás delas: - O que sou eu? O que é tudo isso ao meu redor?





Schopenhauer foi um dos

não tantos ocidentais que viveu rigorosamente se fazendo essas perguntas e

as lançou em seu deslumbrante O Mundo como Vontade e Representação, que

se abre com esta frase atordoante: - O mundo é minha representação.

Claro, então, que para o representar – isto é: para traduzir o mundo para mim, e em mim – não basta a mera curiosidade . É essencial que eu tenha essa vontade de saber o que ele é. E, para

isso, devo começar por mim mesmo, embora por avydia – o saber errado segundo os Vedas - me veja como autônomo e dele separado, devo começar pelo: - O que eu sou?

Só a pergunta, porém, não é garantia de uma Resposta. E se é uma forma de ambição do eu/ego que pergunta, então – nenhuma chance. Uma certa inocência

no perguntar – quase como quem já sabe a resposta – é necessária para se ser ouvido pelo Universo. Tudo se complica, se Spinoza está

certo em sua Ética , III, segunda Proposição, quando ele diz: A própria experiência

ensina, não menos claramente que a razão, que os homens se julgam livres apenas porque são conscientes de suas ações, mas desconhecem as causas pelas quais são determinados. Ensina também que as decisões da mente nada mais são do que os próprios apetites: elas variam, portanto, de acordo com a variável disposição do corpo. Assim,

cada um regula tudo de acordo com o seu próprio afeto e, além disso, aqueles

que são afligidos por afetos opostos não sabem o que querem, enquanto

aqueles que não têm nenhum afeto são, pelo menor impulso, arrastados de um

lado para outro. Sem dúvida, tudo isso mostra claramente que tanto a decisão

da mente, quanto o apetite e a determinação do corpo são, por natureza, coisas simultâneas, ou melhor, são uma só e mesma coisa, que chamamos decisão quando considerada sob o atributo do pensamento e explicada por si mesma, e determinação, quando considerada sob o atributo da extensão e deduzida das leis do movimento e do repouso.


E agora?

A minha própria existência me ensinou uma coisa, que gostaria partilhar com você. Aceita? Para fazer a sua própria investigação? É assim: Nascer é ser lançado no espanto de existir. Da mãe

se cai diretamente em um Lugar Desconhecido: a Vida Visível, e na inquietante pergunta: - Onde estou? O que acontece a partir daí? Se em você predominar o Medo do Desconhecido, provavelmente irá atravessar a vida inteira como que fingindo que não está aqui, vivendo, ou,

como se diz, que não está aí e nem está chegando . E lá se foi, entrando por

uma porta e saindo pela outra, mais uma vida passada em branco, como um fantoche manipulado pelas circunstâncias.

Lembra do que leu em Kleist?

E pior: uma vida danosa para os outros, porque essa sua tentativa de evasão com

o tempo se torna inevitavelmente uma forma defensiva de invasão. Você se tornou um filho do Medo. E o Medo é mau. Mas se em vez do Medo do Desconhecido a mesma pergunta: - Onde estou? – se manifestar em você como a vontade de saber de que fala Schopenhauer? Então,

tudo se inverte. E você penetra na existência com sons de hinos, se anunciando esvoaçante como quem entra em uma Festa: - Ave, cheguei.


Os gregos antigos chamaram a isso thaumazain / o espanto de existir. E sobre isso escrevi no livro Ó Serdespanto. E sobre isso o pensador Benedito Nunes escreveu, falando do livro: - Não é por acaso que este livro-poema tem uma origem filosófica que seu

próprio nome denuncia. Pois o ser de espanto não é senão o thaumazain grego, o

espanto que deu nascimento à Filosofia, como misto dos sentimentos de admiração e de estranheza diante do que há.


Certamente o que faz uma pessoa nascer como mais um apavorado filho do Medo ou um ousado desvendador de mistérios não se explicará apenas pelo Dna da ciência ocidental. Há também o

que orientalmente se chama Karma. Heranças paternas & maternas vêm fisicamente junto com o susto de nascer? Também metafísicas heranças cósmicas?

Bem, nascendo para o temor ou para a audácia, devemos nos fazer a seguinte pergunta: - E se fica condenado a viver como se nasceu, do princípio ao fim, assim, imutavelmente?

Ou existem maneiras de transformar o temor inicial com que se nasceu,

se for o caso, em destemor ao longo do nosso caminho através da vida?














Antes tateamos, espreitamos, distinguimos Caminhos: o das Pedras e o das Águas

Buscamos Vias nesses caminhos, e aos que eles possam nos levar.



Agora, você deveria tentar manter um diálogo iluminador com Bodhidharma.


Ele foi um monge budista que viveu no século V e trouxe o

Budismo da Índia para a China, onde, a partir de seus ensinamentos, se desenvolveu o Chan chinês, a primeira forma do que depois passou ao Japão com o nome Zen. Até hoje os mosteiros Shaolin por onde passou o têm como mestre. E um dos diálogos entre discípulos

& mestres mais frequentes e constantes

no Zen gira em torno dele:

Discípulo: - Qual a razão da vinda de

Bodhidharma para o Ocidente?

Mestre responde: - O cipreste no campo.

Como quem diz, mas sem esgotar o

mistério: ah, são coisas da vida.

E o que Bodhidharma ensinou?

Ah, quase nada: apenas o que chamou

bìguan / olhar a parede . Segundo ele:

Aqueles que se afastam da Ilusão de volta

à Realidade, que meditam nas paredes, a ausência de si-mesmo e do outro,

a unidade entre mortal e sábio e que se mantêm impassíveis até mesmo pelas

escrituras estão de acordo completo e

silencioso com a razão.

















Bodhidharma e as Entradas no Caminho


Este mundo tríplice,

no qual convivemos por tão longo tempo, é como uma casa em chamas.


Bodhidharma








Voltemos bem atrás no tempo para esta conversa com Bodhidharma.


Diga a ele:

- A gente se desvia do Caminho –

entendido como a Via do Dharma, a Lei

que rege o Cosmos, e a via correta para

a existência humana - quando, por nossas

ações, nesta e em outras possíveis

flutuações anteriores e futuras pelo

Universo, ativamos os chamados karmas negativos

entendendo o processo kármico como

causaefeito. A via do Dharma é o meio

de gerar karmas positivos?


Bodhidharma lhe dirá: Muitas são as formas

de entrada no Caminho, mas podem ser

resumidas em duas. Existem a Entrada

da Inteligência e a Entrada da Conduta.

A primeira é a compreensão da essência

dos ensinamentos do Buddha por meio

das escrituras, pela qual surge a profunda

confiança na natureza verdadeira, a

qual é compartilhada por todos os seres

sencientes – aqueles que sentem . Ela não

se manifesta porque é obscurecida pelos

objetos exteriores e os falsos pensamentos..

Pelo abandono do falso e a proximidade com o verdadeiro.

o homem com

mente unificada se senta em meditação,

descobrindo que não existem nem eu,

nem outro, e que o homem e o santo possuem a mesma essência.

Nisto ele coloca

sua firme confiança e dela não se afasta.

Sendo silenciosamente um com a Inteligência, das palavras ele

não é escravo, e é

livre da consciência discriminativa.

Ele é sereno e se situa além da ação.



Se entendeu, diga: - Entendi.

E faça a pergunta seguinte: - E a Entrada da Conduta?


Bodhidharma: Ela inclui quatro

condutas, nas quais estão todas as ações.



Pergunte: - Qual a primeira?


Bodhidharma lhe dirá: A primeira é Como

se livrar do ódio. Quem se disciplina no

Caminho, quando encontra condições

adversas, deverá pensar assim : - Por

incontáveis eras no passado vaguei por

múltiplas existências, me apegando à

trivialidade e desprezando o essencial.

Criei com isso inúmeras situações

propícias ao ódio, à má vontade e às ações

não-saudáveis. Mesmo que nesta vida

transgressões não fossem feitas, ainda

assim os frutos das ações maléficas

do passado se manifestariam. Nem os

seres luminosos, nem os homens poderiam saber o que

a mim está reservado.

De boa vontade e com paciência aceitarei

os males que a mim sobrevierem e deles

não me lamentarei. Nos sutras é dito que

não devo me agitar pelos males que surgem,

pois, quando com inteligência as

coisas são penetradas, os fundamentos

da causalidade são conhecidos. Quando

tais pensamentos surgem num homem,

com a Inteligência ele estará de acordo,

fazendo do ódio o melhor uso possível e

o colocando a serviço do Caminho.


- Precisamos já quase desesperadamente

dessa metamorfose de mal em

bem nos tempos atuais. Assim, contaminados.


Se você se disse isso com intenso sentimento,

então faça a próxima pergunta a Bodhidharma – mas cada vez se perguntando

mais a você próprio do que a ele.


Pergunte: - Qual a segunda conduta?


Bodhidharma: É Aceitar o karma.

Nos seres produzidos pelas condições

do karma, nenhuma substância imutável

pode ser encontrada, e a alegria, bem

como o sofrimento, são também resultados

de ações intencionais do passado.

Se vêm a riqueza, o louvor, etc, estes são

resultados de ações passadas que,

devido à causalidade, afetam minha vida

no presente. Esgotada a força das ações,

os resultados que agora desfruto se acabam.

Por que, então, me alegrar com

eles? Ocorrendo o ganho ou a perda,

que eu aceite o karma. O coração nada

sabe de aumentos ou diminuições. Na

harmonia silenciosa com o Caminho o vento do prazer não me abala

Isso é o significado de aceitar o karma.



- Ah,você se diz, lembra o provérbio: Não há bem

que sempre dure nem mal que nunca se acabe.

- Qual a terceira conduta?


Bodhidharma: A terceira é Nada

desejar. Neste mundo, os homens

continuamente confusos, se apegam sempre

aqui e ali. A isto se chama desejo. Os sábios, porém, compreendem a verdade, e

em nada se assemelham aos ignorantes.

Serenamente seus corações repousam

no não-criado, enquanto o corpo se move

de acordo com as leis da causalidade.

Todas as coisas são vazias e nada vale

a pena buscar. Lá onde está o mérito

do brilho, também está o demérito da

escuridão. Este mundo tríplice, no qual

convivemos por tão longo tempo, é como uma casa em chamas.

Tudo o que tem um corpo sofre e ninguém sabe

realmente o que é a paz. Os sábios nunca

se apegam a nada, pois conhecemos

intimamente esta verdade. Com os pensamentos

serenos nada desejam. Assim

diz o sutra: Quando há o desejo, há o sofrimento.

Com a cessação do desejo vem

a felicidade. Sabemos, deste modo, que

nada desejar é o caminho para a verdade.

Isto é o que significa Nada desejar.


- Nossa casa está em chamas,

então, você se diz. Como escaparemos dessas chamas?

Pela quarta conduta?


Bodhidharma: A quarta conduta é

Estar de acordo com o Dharma. Significa

que a Inteligência a que chamamos Dharma

é pura em sua essência e é o princípio

da vacuidade em tudo que se manifesta.

Está além das manchas e dos apegos.

Nela não há nem eu nem outro.

Diz o sutra: No Dharma não há seres sencientes,

pois ele está livre da mancha do ser. No

Dharma não há eu, pois ele está livre da

mancha do eu .

O entendimento e a confiança nesta verdade tornam as ações dos

sábios conformes ao Dharma.



- Viver conforme o Dharma é, então,

é o essencial nesta Vida - nessa Via.


Bodhidharma: A essência do Dharma

é o não desejar e, assim, os sábios estão

prontos para a generosidade do corpo, da

vida e das propriedades. Em nada lamentam

e são livres da má vontade. Sua compreensão da natureza tríplice

da vacuidade os leva para além da parcialidade e do

apego. Devido à sua vontade de limpar

as manchas dos seres, eles se adaptam a

eles sem se apegar à forma. Esta é a fase

do benefício próprio em suas vidas. Mas

eles sabem também como ajudar aos

demais e louvar a verdade do Despertar.

Como é com a virtude da generosidade,

assim também com as outras cinco virtudes.

Os sábios praticam as seis virtudes

transcendentes afastando os pensamentos confusos sem esperarem

pelos resultados meritórios destas ações.


- E, assim, estão de acordo com o Dharma?




Eu,

havendo sido despertado por Kafka,

na nossa Noite comum,

posso lhe perguntar:

- Por que fez mais essa pergunta a Bodhidharma, deixando ainda adormecida a resposta

em Si mesmo

enquanto gira em meio a todas essas visíveis e tantas outras invisíveis estrelas


e,

desde aqui até mais além delas,

O Mistério,

ou a

Liberdade

?





















ÆÁħÅ

A serpente que dá voltas







Diz Plotino, ele cantava: Uma circunferência

cujo centro está em toda parte

é infinita


Olhava a serpente e prosseguia


E eu, muitas palavras já ouvi

Sobre a noite de onde vim antes de florescer,

e o florescer do homem,

e o fenecer do homem, e o nosso retorno à noite

após o fenecer


já ouvi

já ouvi, muitas palavras já ouvi


Mas quando pergunto só Eu, o que? Eu, quem?

o que ouço é a minha voz e Uma palavra

em mim


E ela me diz que sou parte da Esfera

e que a Esfera é simplesmente, e que a Esfera

é assim:


ou nada sabe de si e nada sabe de mim,


ou tudo sabe de si e tudo sabe de mim,


ou nada sabe de si, e só se sabe de um jeito,

que é através de mim,

na sua solidão de Esfera à minha espera,


e diz que um dia parti sem saber nem o que sei,

e sendo assim como sou

e como não sou, não sei


e nada sei da Esfera, somente

que não era nela, e hoje sou, mas depois já não serei, pois terei ido de mim,

me dando adeus outra vez,


a menos que volte a não ser, depois de ter sido, aquilo que eu não era antes

de ser isso que sou,


mas que ainda não sei o que possa vir a não ser,

apenas que está para a Esfera como a Sede

está para a Água,


mas não existe a certeza: Se sou a Água

ou a Sede,

nem qual delas é a Esfera, se é a Sede ou a Água,


pois talvez nem exista a Esfera, e só a sede de ser


que faz haver a Esfera e faz haver eu

O que? Quem? no coração da Esfera,


o que, quem sabe, é um sonho em que me sonho

na Esfera,


ou só depois deste ser ter já em mim florescido, visivelmente nascido

ou já me sonhava antes, ainda invisivelmente,

quando criava o real

e este sonho

em que eu estou, e que vou seguir sonhando no invisível depois,


um passo adiante a dar

que será o mesmo invisível

de antes do florecível,


quando assim como sonhei o nascimento

da Esfera

sonharei a nossa morte,

a minha morte e a da Esfera,

ou a da Esfera em mim,

ou a minha na Esfera,


ou nem a minha nem a dela, amém, por ela

e por mim



Sim, talvez não sim é assim


De Ó Serdespanto,

livro visível de Viagem a Andara oO livro invisível

de Vicente Franz Cecim































É POSSÍVEL

VIVER

SEM SER FERIDO

PELA VIDA?